Há uma ansiedade própria que me apoquenta antes de uma prova grande, e tinha na
Freita a responsabilidade acrescida que pesa sobre um nubente que havia prometido
em 2015 desposar tão distinta senhora.
Havia feito a despedida de solteiro na semana anterior com a melhor companhia do
mundo. Abalámos os dois e embalámos serra acima na Lousã, como que já um ritual
iniciático sempre que vou à Freita.
A semana passou, os nervos cresceram, e a hora de saída tinha chegado.
E chego cedo a Arouca. Vou eu e o meu amigo C.A.S.P.A. Oliveira, que me havia de
socorrer na vinda, quando o cansaço me traía os olhos e a vigília se apagava e me
desligava a consciência.
Como nós, também alguns convidados, talvez os de longe, iam chegando para a festa.
E depois o protocolo do costume, cumprimentar os amigos de quem só sabemos o
nome e que correm connosco de serra em serra, mas que parece que conhecemos
desde sempre, filinha para levantar dorsal, mais conversa, e … era a Flor Madureira, a
mãe da noiva, atarefadíssima com os últimos preparativos do casamento da filha,
dividida entre mil afazeres que pediam a sua atenção. Cumprimentamo-nos e
despedimo-nos logo de seguida, haveríamos de ver-nos depois, depois de tudo,
quando a meta ditasse o glorioso triunfo do querer sobre a moléstia do corpo
esgotado, assim incomodado pelo desgosto da canseira.
Pouco mais tarde o briefing que faço questão, sempre, de ouvir. O Mestre Moutinho
explica a Freita de forma tão apaixonada que, por ele, passaríamos a noite toda a ouvir
cada pormenor, cada história que cada curva do caminho encobre, fala dela com um
entusiamo quase a tocar a agitação, e é delicioso ouvi-lo perder-se na justificação, na
minúcia que a profundidade do seu conhecimento da Freita alcança, como um pai
conhece a sua filha.
E depois foi dormir à pressa, e embuchar a aveia, o café da praxe, o conjunto tafula das
cores misturadas dos convidados que haviam posto o melhor fato para a celebração, e
num repente a felicidade da fervura inebriante dos nervos da partida.
Boa sorte a todos.
Na primeira subida ia num combóio que alinhava os primeiros oito quilómetros com
um desnível de mil metros positivos num ritmo confortável, e na mesma carruagem
que uma senhora do norte que gritava de quando em vez lá atrás um “ai” estridente e
cómico, e de uma espanhola galega que se ria desalmadamente lá à frente a cada
tirada da outra, e eu no meio ria-me, porque sim!
E então as eólicas, a melancia e a broa. E novamente o Moutinho que já a meio
caminho desta primeira etapa lá ia bradando que no fim nos encheríamos de glória. E é
verdade. Quem vai à Freita deve sentir-se honrado por acarretar consigo, amontoado
com o torvo padecer e a languidez do corpo, o doce sabor de cem quilómetros
trilhados pelos caminhos mais difíceis e recônditos que tenho memória de ter
percorrido.
O Planalto lá estava no mesmo sítio, verde e dormente, que nos obriga a correr, e nos
atraiçoa em conluio com as nossas forças que ainda acusam solidez e firmeza, e se vão
gastando logo ali e não se poupam para depois.
Corri o caminho quase todo até Tebilhão, até desembocar no abastecimento
desarolhado pela levada que ainda escorregava abundante.
Mais melancia, tomate e sal, e pouco mais porque a pressa de fazer o rio antes do
calor urgia.
À saída de Tebilhão descia uma velha com um feixe de erva às costas. Baixava ladeira
abaixo carregando o fardo dos dias, da rotina da vida que passava, espinhosa e maior
do que as suas costas deviam carregar. Digo-lhe “Bom dia minha senhora”, dá-me de
troco “Vá com Deus”, e reforça depois “Vá com Deus Nosso Senhor”. Retribuo com um
“Obrigado” emotivo.
A bondade comove-me. “Vá com Deus” traduz o princípio de desejar o bem aos
outros, sem contrapartidas, sem outro proveito que não o de confirmar a satisfação, a
tranquilidade ou o conforto dos outros.
Fui uma boa parte do caminho a seguir a Tebilhão com algumas pessoas na cabeça.
Todas aquelas que de forma desinteressada me presentearam com a sua existência e
com actos de generosidade.
Desde o Caminho do Carteiro e até depois da zona das minas de volfrâmio dava ideia
que estaríamos a entrar num forno. O dia aquecia por cima a terra ajudava por baixo.
O chão brilhava com os cristais de quartzo sob o sol incompassivo e eu caminhava
taciturno o xisto escavado da escarafuncha do vasculhar do volfrâmio.
Era então um Ícaro que esvoaçava no limite da ardência do sol, sem medo que a cera
derretesse, para cair inevitavelmente depois lá em baixo, nas águas do rio, primeiro o
de Frades e depois o de Paivô.
E já estou no rio. Recordo este pedaço de céu com gosto. Apetece-me dizer ao Camané
que também eu “Sei de um rio, sei de um rio …” que não me foi emprestado pelo
Pedro Homem de Melo, que é meu, porque o sinto na pele toda e no coração todo
quando o trespasso, transpassando, sem o saber, também a dor, e o amor e o mistério
que a Freita encerra.
Logo à entrada, na primeira transposição de uma rocha do leito caí! Era como que a
Freita a avisar-me que deveria cuidar de fazer o caminho com cautela, e assim foi.
Lá ia prosseguindo, umas vezes mais afoito, outras vezes mais a medo, passava alguns
atletas e era passado por outros tantos.
Atravesso o rio pelo eucalipto no mesmo sítio onde me tinha engolfado para me
refrescar há um ano com o Ico, para voltar depois a cruzá-lo mais algumas vezes. Ora
para cá, ora para lá.
A despedida do rio fi-la a preceito. Tirei a mochila e o relógio e pude desafoguear o
corpo inteiro debaixo de água, e sabe tão bem aquela água fresca e transparentíssima.
Depois da estrada a subir, Covêlo de Paivô e a paragem da “camioneta” onde tinha
ideia de demorar o descanso, mas já estava ocupadíssima. O Moutinho parece que se
desdobrava e aparecia em todo o lado, e está sempre presente com mais um conselho
e mais uma recomendação. E isto faz falta, e diferencia uma prova com referências de
uma prova sem rostos. É extraordinário ter o Moutinho de manhã, antes da partida,
misturado com os atletas, a conversar, ou ter a Flor a dizer o nosso nome de cor. Sim, é
isto que faz toda a diferença!
Bem! Agora era conquistar Regoufe e o leito da ribeira até ao abrupto apogeu onde se
afunda, lá longe, Covas do Monte.
Pelo caminho as bicas do costume que nos vão dando de beber a força daquela serra e
a companhia do Mestre Manuel Victorino. Umas vezes puxa ele, outras vezes puxo eu,
e lá vamos rompendo caminho e conversa.
Alcanço o Pedro Cordas que já me havia passado no rio e vamos brincando à apanhada
numa boa parte do troço até Regoufe.
Depois de Regoufe a promessa de que hei-de ir um dia almoçar a Covas do monte. Ou
até fazer o dia com o pastor do rebanho comunitário, sair de manhã cedo, comer da
merenda do pastor e regressar à aldeia para retemperar forças na antiga escola
primária e fortalecer o ânimo com a hospitalidade tão boa da senhora de idade que ali
me serviu um prato de sopa vigoroso.
Saio de Covas do Monte com o Nuno Neves Pé de Atleta (uma coincidência
improvável, que dupla! – Pé de Atleta e CASPA!) e com a conversa do rebanho
comunitário, depois de dar as boas tardes a quem está, e dizer que as cabras
conseguem descer melhor aquele bocado de caminho que me parece ser uma linha de
água seca, do que eu. Uma das senhoras diz-me que as cabrinhas já estão de regresso.
Também eu estou de regresso, numa espécie de torna-viagem, de volta à génese da
vida, simples e espontânea, a fuga, numa evasão, da vida de plástico, à vida natural.
Nisto, aventei-me subida acima, era um Bispo amparado com um báculo em cada uma
das mãos, e corria a evangelizar a montanha, a apaziguar o inferno que tinha a porta
principal lá em cima. Lutava com o Diabo na forma de cansaço e de calor, numa viagem
onde o monte cabotino havia de me querer vergar, e eu espicaçava-o com a ponta dos
bastões, enquanto me ia socorrendo da réstia de genica que ainda me sobrava da
sopa.
A disciplina necessária para superar aquele atalho à casa do demo já a havia ganho,
ainda mancebo, quando ali tinha ido “às sortes” e ali fiz a recruta, com o Rui Pinho,
num dia de verão bem mais quente.
Fez-me falta a companhia dele este ano! E aquele sotaque do “puôrto” quando me
dizia “pára de comer car@#&#!”. Este ano também enchi bem o depósito com pizza! E
com a “boa energia” da Rosa e de quem estava com ela no abastecimento.
Saí dos quarenta e oito quilómetros pelo caminho do matrimónio, uma rampa a subir,
um talude que desce muito e o imaginário do rio novamente encarnado na Ribeira de
Palhais que me haveria de levar até Drave, logo ali, aconchegada no colo das Serras da
Arada, Freita e São Macário.
Casámos em Drave.
Fazia sentido que fosse em Drave. Na Capela de Nossa Senhora da Saúde. Numa capela
branca a destoar da paisagem, numa aldeia fantasma que a serra engoliu, ali no meio
do nada, no centro do meu contentamento como houvera escrito noutra prosa, onde o
dinheiro não tem serventia e o relógio é inútil.
E então espero às cinco da tarde, mais minuto menos minuto, à porta da capela de
Drave, de fraque preto, longo, com apenas um botão, calça riscada matizada em duas
tonalidades de cinza, entre o cinza ardósia e o cinza médio, plastron pérola pregado
com um broche de madre pérola, e desenhos em dourado pálido, e o lenço e o colete a
condizer, camisa de colarinho quebrado alto em branco floral, e a cartola, em feltro
cinza prata claro, cintada e debruada a cetim preto, e sapato de estilo richelieu em
pele de avestruz. Era assim que me entregava para consorte.
Primeiro entrei eu, desajeitado das pernas.
Acompanhou-me ao altar o José (CASPA) Brito.
Conheci a senhora dona Freita pela sua mão, quando ela era ainda mais pequena, mas
já muito difícil, conheci-a na altura em que não acreditava que a Freita era para mim,
quando eu precisava da Freita e ainda não o sabia, quando a minha primeira Freita se
resolveu no momento em que me disseram que acreditavam em mim, que eu ia
conseguir, muito antes de eu próprio crer ser possível.
Só depois, com o atraso que é usança nestas coisas, vinha o Grão Mestre Moutinho, o
pai da noiva, e a encantadora Flor Madureira, a mãe. Entregavam este ano a Freita,
mais bela que nunca, a quantos a desejavam percorrer. Mas só eu podia casar com ela.
Já havia dito aquando da inscrição que tratassem do bolo que este ano era o casório.
Sim, depois de a conhecer e de me enamorar pela Freita, depois de em 2015 a ter, com
tanto custo, conquistado, deixei a promessa que este ano a desposaria.
Escolho para padrinhos a Carmen Lima e o António Morais. Porquê? Porque sim!
Porque é inexplicável chegar a uma meta, seja ela qual for, e ter a simpatia do António
a dar-nos os parabéns, porque é inesquecível o sorriso fraterno da Carmen quando nos
cumprimenta e nos deseja boa sorte, porque o António devia estar a dormir mas
esperou por mim em Arouca para me felicitar, porque nestas coisas do trail
encontramos gente boa, e o António e a Carmen são tão especiais, porque eu não os
conheço de lado nenhum, e eles não me conhecem de lado nenhum, mas entraram
mesmo assim e sem licença na minha vida e trouxeram a alegria da bondade com eles.
A Freita também escolheu as madrinhas para o casamento. Vieram a Lousã, a Arga, a
Estrela, e a Açor.
A Estrela e a Açor ofereceram-lhe o vestido de noiva, branquíssimo, em renda de
brocado, que haviam tricotado em Abril e em Maio, uma e outra, quando um dia, ao
olhar para cima, depois de Piódão, dou com um cume branco, lá longe, ou me delicio
noutro dia, depois da Torre, numa pose de triunfo sob a neve, para a objectiva de um
camarada do Millennium.
No vestido branco leitoso ressaltava um cordão delgado, de ouro, cruzado em
trancelim que ostentava um coração da mais rica filigrana portuguesa que a Arga
misturou com o encanto das mulheres do norte, das mulheres do Minho, robustas e
rijas, e de sorriso franco e espontâneo.
A Lousã trouxe ainda os sobrinhos, os três desinquietos que me carregaram as pernas
ora em Janeiro, ora em Junho, ora em Outubro.
Todas juntas, as quatro, mais a Freita, caldeavam os sentimentos de um qualquer
homem que se aventurasse no seu engodo.
O Coro de Câmara da Escola de Música da Golegã (e é este porque nos faz estremecer
no peito quando cantam) abria a cerimónia, trauteavam o ar em Sol, o Air in G String
de Bach, que ressoava enquanto eu percorria o pequeníssimo caminho da capela
pautado por música, num prelúdio que me havia de acompanhar depois,
mentalmente, mais tarde, quando desafiava o sofrido caminho dos aztecas ao
encontro dos três pinheiros que agora são só dois, mas que serão para sempre “Os três
pinheiros” para quem ali passa com já quase sessenta quilómetros de exultação.
Não entoavam música, simplesmente tocavam emoções com a voz, com as vozes
emaranhadas num intrincado cálculo de orquestra onde contraltos e barítonos
temperavam a impetuosidade cortante de sopranos e tenores num vozeado
retumbado, e balanceavam assim num bailado de fazer arrepiar o coração.
Logo depois a procissão de entrada, a magia dos violinos, e o presságio espavorido que
esbaralha os sentimentos a cada compasso de Gloria in Excelsis Deo de Vivaldi, a
Freita.
A Freita que entra de braço dado com o Moutinho, sob o olhar emocionado e
plangente da mãe Flor, que entra com o passo ensaiado, para demorar o tempo
necessário para que todos a possam apreciar e maravilhar-se, que nos entra olhos
adentro, já depois das eólicas, no Planalto irregular, no Caminho do Carteiro e onde a
vista pode chegar, e peito adentro quando nos entregamos ao deleite de saborear os
três inexpressáveis quilómetros de rio, e pela alma adentro quando desafiamos o adro
do diabo a subir até à sua porta, quando cruzamos Drave e quando nos juntamos aos
amigos na meta.
E ali estava ela, a Freita, com suas madrinhas e logo junto as Damas de Honor.
De todas as Damas de Honor sei apenas o nome da Rosa, não o “Nome da Rosa” do
Humberto Eco, mas da dona de uns olhos lindos, de um sorriso cativante e de uma boa
disposição fascinante.
Mas eram muitas as Damas de Honor que desfilavam em cada abastecimento e
tornavam mais fácil esta viagem aos confins do ego onde cada um expiava o pecado de
esgotar o limite das próprias forças. Obrigado a TODOS.
E então prometemo-nos mútua amizade e selámos o pacto com o anel e o beijo no
exacto momento em que a soprano afinava a Ave Maria de Shubert, e orava assim em
jeito de saudação a Maria - Ave Maria, Gratia plena, Dominus tecum…
Jurei fidelidade, amor e respeito a uma serra que por três vezes provou dos meus
prantos, e por três vezes me obrigou a dar de mim o que tenho e a procurar o que não
tenho em mim, que me violentou a esconjurar os rancores que me amaldiçoam.
A Freita é linda.
Saímos juntos da capela de Drave, de braço dado, de vidas dadas e salpicadas de arroz.
E o bolo de noiva era ali servido aos convidados, numa mesinha com toalha de renda e
uma pedra de xisto a fazer de cunha por baixo de uma das pernas que estava manca,
quase tão manca como as minhas duas que já não se lembravam da dificuldade do
percurso entre Drave e Póvoa das Leiras.
Comemos bolo e bebemos vinho espumante, quase tão bom como o verde do amigo
Gomes, o verde da Corga da Chã, que vive ali ao lado, mais acima em Alvarenga,
bebemos à ganância que estava fresquinho e borbulhava ufano nas flutes que se
levantavam para brindar saúde.
E depois do bolo chamaram-se as solteiras. As mais novas, as tias mais velhas, as
namoradeiras e as celibatárias e as encalhadas, chamaram-se todas para que
alcantilassem as mãos a apanhar o bouquet e fizessem desenlaçar a vida apresilhada.
A fotografia de casamento fê-la uma senhora a quem pedi à pressa se podia esperar
para registar ali a minha passagem (Obrigado por esperar e por aceder ao meu
pedido!). Vinha num grupo de caminhantes de Braga, do Porto, de Coimbra e de
outros lados, e que subia a Drave enquanto eu deitava a perder o tempo em cada
detalhe idioscópico, em cada encanto e me deixava fascinar pela evocação das vidas
que ali deixaram história, da biografia dos Martins e o Solar dos Martins (e o meu
último nome é Martins! O Universo parece entreter-se a desatar um arrevesado e
obscuro labirinto que conflui sempre para a coincidência! Serei eu também um
Martins de Drave?).
E então parti. Saí de Drave reconfortado da vista e da alma. Só parei numa bica, a
descer, antes do pequeno troço de rio que antecede a demorada e pungente subida
aos sessenta quilómetros.
Abasteci e sentei-me num cantinho de uma curva daquela serra onde a paisagem
apaga os problemas, todos os problemas e deixa ficar apenas a tranquila desordem do
vazio imenso.
Ali era eu e a Freita, só os dois.
Voámos juntos a subida dos três pinheiros, e o resto do serpenteado sinuoso do Trilho
dos Incas. E depois estava o Ico, que vinha a fazer uma prova tão boa, e foi atraiçoado
pelas pernas acomodadas que pediam o pôr-do- sol de um escarlate solferino, que
pediam a refúgio das gentes de Barrancos.
Póvoa das Leiras!
Chego com cerca de duas horas de folga do tempo de corte, atiro-me ao saco da muda,
tento despachar-me, aceito a ajuda para desatar o nó, que as mãos perderam a
destreza, como e bebo, e descanso, e troco as meias, e penso na vida, e passaram
quase quarenta minutos, o tempo suficiente para a boda, dos aperitivos às sobremesas
e digestivos, agora era tempo de sair e ver o que ainda havia para ver, do estender do
sol a poente até ao nascer no outro dia.
E era a BESTA.
Depois do almoço de casamento em Póvoa das Leiras, o baile.
Dançámos a Valsa da Besta, com arranjo musical do pai da noiva.
A vantagem de trepar a Besta de dia é enorme. Demorei um pouco menos de
cinquenta minutos este ano. Em 2015, enquanto namorava a Freita, e me entranhava
em memórias e emoções demorei muito mais. Desta vez também me sentei, também
bebi da Besta, pregava os olhos quase magnetizados, atraídos pelo palco que tinha na
minha frente, que teria de pisar, eu e todos os outros actores, para viver a ilusão de
cumprir a Besta.
Em 2015 sentei-me por mais tempo, escalei ao mais profundo degrau do mais restrito
núcleo do meu eu, agora só ensaiava um meditar profundo, olhava-me ali, esquálido,
num Limbo entre o conforto do vagar e a redenção lá em cima, no fim da Besta, depois
de amar cada pedra do caminho, depois de, segundo Pessoa (não, não foi ele, não é
verdade que tenha sido ele a escrever o poema!), construir o castelo, para aprisionar
aquela fantástica fábrica de sonhos que me faz entrar dentro de mim e descobrir-me
os cantos, e arrumar-me as ideias.
A Freita tem o dom de nos encantar!
“Depois da Besta é um percurso corrível a descer!”. Ou o sono me atraiçoou ou
parece-me ter ouvido o Mestre Moutinho a dizer qualquer coisa parecida com isto na
noite do briefing.
Desço na companhia do Valter Martinho e do Pedro Cordas que vão à frente, e eu
tento apanhar o combóio, mas as descidas denunciam a minha fraqueza, e vou ficando
mais atrás para os voltar a alcançar já quase em Manhouce.
Havia de repetir mais tarde umas quantas vezes ao Pedro para nas descidas não
esperarem por mim, depois tentaria apanhá-los.
O dia já tinha anoitecido quando cheguei a Manhouce.
A boda de casamento continuava. No coreto, agora iluminado, a banda lá ia afinando
mais umas quantas harmonias, e a Carmen lá estava, tocava na orquestra, e tocava-
nos no coração, porque a Carmen faz sentir a cada atleta que ali passa que é especial.
Quando chego atiro de uma assentada:
- “Não estavas à espera de me ver aqui tão cedo, pois não?”
- “Não!” Respondeu-me.
- “Nem eu!” Retorqui.
Bebi um café que me trouxe a Esmeralda Melo. A Esmeralda era a taumaturga da
cafeína que eu precisava para continuar a dançar o resto da noite.
A partir dali tocava o clássico “Apita o combóio”.
Ia eu, o Valter Martinho e o Pedro Cordas e um pouco mais tarde o Sousa que se havia
adiantado um pouco à Ana Santos.
Tentava ganhar vantagem a subir para não os perder depois nas descidas. O Pedro e o
Valter iam conversando, eu ia dançando com a Dona Freita coquete, que trajava agora
um vestido preto, muito comprido, onde brilhavam as mil estrelas do céu disfarçadas
de lantejoulas (Ó Cordas, tu és um gajo extraordinário, és uma pessoa com “bom
fundo”, é o que retiro da tua conversa com o Valter, obrigado pelos bocadinhos da tua
companhia).
Os convidados iam seguindo o seu caminho e eu e a Freita tínhamos ainda a noite de
núpcias para nos afogarmos com beijos num kamasutra de mais de oito quilómetros
tântricos.
Seguro-lhe primeiro pela mão, trocamos um olhar cúmplice e suspiroso, envolvo-a nos
meus braços e beijamo-nos. O corpo arrepiado pede mais. Mergulhámos um no outro.
Tentava com perícia calcorrear-lhe as curvas erógenas, a Freita abraçava-me, sôfrega,
eu descia-lhe cada centímetro do seu corpo serra eriçado, e tomava fôlego para voltar
a subir-lhe cada esconso, cada recanto escondido, numa demorada visita arqueológica
que ali havia sido preparada. A Freita arqueava-se ao prazer da excitação, das carícias
das minhas mãos que abriam o caminho da fantasia, que aumentavam a maravilhosa e
intensa sensação para o êxtase do enredo final.
Esgotou-se o ápice do auge do prazer e o corpo anestesiado havia de pedir o descanso
no abastecimento a seguir, numa cadeira que haveria de estar preparada para mim,
onde me haveria de sentar para matar o cansaço e a gula da bifana. Mas ainda não era
agora. Só depois, agora ainda não tinha embarcado no carrossel dos sonhos, agora
ainda palmilhava o carrossel íngreme do sobe e desce que o Lebre Sousa fazia questão
de afrontar (Ahahahahahah é impossível deixar-se sucumbir ao sono quando se está
com o Sousa!)
Depois de descer a pique na direcção da ribeira volto a subir na direcção da Lomba.
Mas torno a descer, e a pique, novamente, e outra vez a ribeira tagarela, que não sabe
que é já tão tarde e não pára de falar. Depois há degraus! São estes, estamos a chegar.
Não! Não eram aqueles os degraus que haviam de ditar o martírio da chegada à
Lomba.
Sigo no trilho, vê-se a cruz azul logo ali, à distância de um fôlego, mas as fitas
continuam a descer.
Depois disto vem-me à ideia a possibilidade de estar perdido. E num repente o
“insight” de que aquele poderia ser o caminho dos 65km fez-me parar. Desabafo com
o Sousa e decidimos telefonar. O Mestre Moutinho ainda esboçou uma risada. Claro
que era por ali! Teria de continuar a descer até bem perto da água para apanhar de
seguida os 800 degraus à direita.
Enquanto me fazia içar ocorre-me o pensamento de dizer ao meu agressor Moutinho
para se dedicar à poesia, à filatelia, à astronomia, ou até à pesca, que não rimando em
“ia” é sempre uma melhor opção do que se dedicar à arqueologia. Isso é que não,
arqueologia não! Mas hoje não me arrependo de um só degrau que engoli com a ajuda
de uns quantos tragos de água, vendo bem não são os degraus que me afligem, são as
descidas necessárias para lá chegar.
Olho para trás, já na estrada calçada com pedra, e encontro a grande cruz azul, e é
magnífica, seria interessante passar junto dela, e do que me parecem ser espigueiros,
noutra próxima edição.
E a Freita, depois do extasiante ensaio do clímax, quando lhe toquei o último degrau,
adormeceu, e eu, acordado, sonhei. Sonhei que subia o resto da calçada de pedra até
ao abastecimento da Lomba com o José Sousa.
Chego e está lá a Carmen. Uma cadeira para me sentar, dois dedos de conversa, uma
malga de canja, uma malga de caldo da canja, uma bifana, uma mini e um café! A
mesma receita de 2015, a mesma receita de disponibilidade e simpatia que vamos
encontrando em todos os abastecimentos.
Encho as garrafas e carrego comigo a caminho da Castanheira e das pedras parideiras a
certeza de que a prova estava feita. Como se costuma dizer “Já cheira a meta”.
Primeiro o lento e laborioso trilho que sobre, depois o Planalto, depois a pressa de
chegar à bica da castanheira que eu sabia que lá estava e que nem me lembrava já que
tem torneira e tudo, e cinco dos vinte quilómetros parecem ter demorado uma
eternidade.
De seguida a parte do PR7 e a noite com preguiça de se ir deitar, o relógio sem bateria
e a vontade inesgotável de chegar. Arrisco um trote na parte mais plana e as pernas
corriam já sozinhas.
No Merujal tinha subtraído mais cinco quilómetros, estava a correr bem, sentia-me
bem, mas sabia o que esperar da descida com quase mil metros de desnível negativo e
as pernas guardavam ainda memória de como era custoso esfolar o resto da provação.
Até no Merujal havia Pizza! Que maravilha. Abasteci bem e entreguei-me então ao
resto do caminho, uma trajectória de pendente malvado e perverso que nos obriga a
assentar os pés novamente na Terra, cá em baixo, e deixar a mais delicada e graciosa
amante lá em cima.
Na última recta de alcatrão antes do pavilhão, tempo ainda para me cruzar com a Rosa
que ali estava e me deu os parabéns, entro então na escola, corro os degraus a subir, e
a mesma sensação que não se explica, de força redobrada que nos invade, a euforia do
pórtico já ali, a certeza do momento tão fugaz que eu queria que durasse mais que
momentaneamente, que eu queria que resistisse o suficiente para que pudesse
apreciá-lo com um requinte delongado, com o romantismo poético e piegas de quem
carrega a sensibilidade que se esvai pelos poros todos e inunda os olhos, o instante
fugidio do corredor que me levaria ao sorriso da Flor, do António, da Patrícia Barros,
do Oliveira … de quem estava e de quem eu não sei o nome, obrigado por acarinharem
quem vai chegando.
E eu fiz a Freita!
E então podia adormecer, deitado com A Minha Freita 2016, deitados os dois, numa
madrugada de cambraia de algodão quase transparente, os dois abraçados, colados na
mesma almofada sonolenta e serenada, e então podia abrir a janela à fantasia e
engolfar-me na delícia daqueles olhos sonhadores que me fitam lá longe, lá em cima …
Até para o ano querida Freita.
PS 1 - Obrigado à minha parceira da corrida dos trilhos da vida e sócia na nossa história
construída a dois, pela companhia e tolerância.
PS 2 - Obrigado à equipa fantástica do UTSF que me proporcionou uma viagem de 24
horas com direito aos mimos todos.
PS 3 - Obrigado a quem me ajudou a treinar, me fez companhia e tornou mais leve o
peso do cansaço, na ida a Fátima, nas voltinhas vagarosas de sábado de manhã dos
Trilhos do Bonito-Barroca (Obrigado Dias), e em todos os outros treinos.
PS 4 - Obrigado aos meus amigos CASPA’s pela companhia e incentivo (Tenho ideia que
temos um convívio/petisco em atraso, e nisso é difícil ganharem-me).
PS 5 - Obrigado ao Brito por ir aturando as minhas dores, as minhas dúvidas e receios.
PS 6 - Obrigado ao Miguel pela companhia nos TT (treininhos da treta) da hora de
almoço.
PS 7 - Obrigado a Ti que me vais guiando e me vais acudindo quando mais preciso e
tomaste conta de mim na Freita.