Miguel Gameiro, no passado dia 27 de Junho, foi o representante do C.A.S.P.A. na Ultra Trail Serra da Freita e logo na distância de 100 km ELITE TRAIL.
Miguel Gameiro cada vez se afirma mais como um Ultra Maratonista, depois de já ter terminado a UTSF na versão de 70 km e o UTAX na versão de 100 km agora terminou mais uma prova com mais de 3 dígitos e logo na Serra Freita, é a prova viva que tudo é possível desde que a cabeça esteja bem treinada.
Quanto a resultados desportivos, Miguel Gameiro terminou esta aventura em 25h45:26 conseguindo o 70º lugar da geral.
O relato que se segue é da autoria de Miguel Gameiro e mostra bem o que é o Trail.
A MINHA FREITA (OU UM CONTO QUASE ERÓTICO A ROÇAR O TERRITÓRIO DA ESTIMULAÇÃO SENSORIAL)
A Freita é uma mulher.
Já não é uma miúda carnuda e ingénua. A silhueta já não engana. A Freita é uma mulher
madura cujos encantos a tornam mais apetecível. A Freita cresceu, está mais pesada, mas
também mais bonita e apetitosa.
O tempo acrescentou à idade da Sra Dona Freita a segurança e a confiança.
O cuidado e a paciência para conquistar uma Freita confiante era suficientemente refinado
para despertar o interesse em tomar um amor assim.
A Freita tornou-se, pois, a minha definição de compromisso.
O colo cheio, as ancas pronunciadas e o olhar maroto, foi assim que a encontrei este ano. Em
2014, quando a conheci pouco me ligou, talvez nem tivesse dado por mim, mas a cumplicidade
da troca de olhares marcou uma nova etapa na forma como percebo a Freita. A Freita é uma
mulher resolvida.
Marquei o encontro, fiz a viagem no dia anterior, dormi pouco e mal, corroído pelo nervoso
miudinho que tomou conta de mim.
O despertador asseverava que a Dona Freita já havia acordado, e, espevitada, instigava os seus
pretendentes a gastar-lhe a companhia.
Preparo-me a rigor e vou misturar-me com o clã dos aspirantes à conquista da atenção da
Dona Freita.
A excitação, misturada com a efervescência da agitação dos nervos, apropriava-se de mim.
Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um … depois do momento solene, o baile
havia começado e precipitei-me, arrebatado, a fazer a corte àquela senhora.
Primeiro seriam nove quilómetros a subir. Ouviam-se risos, um gralhar característico dos
momentos iniciais em que o cansaço ainda não saltou ao caminho.
As subidas sucedem-se sem se fazerem notar. Haveria de dar conta do caminho interminável
na volta, quando o descesse.
Subitamente uma algazarra! Eram os atletas do trail, que partiriam às dez da manhã.
Era cedo mas eles já ali estavam, rugiam numa melodia excêntrica como que a despertar-me o
cio, e incendiavam-me o corpo com adrenalina. Não é só o incentivo, é ainda a energia
orgásmica que potencia a força, a vontade cósmica de romper o resto da encosta.
Chego ao primeiro abastecimento. Já ali está a broa de mel! Não quero mais nada, só aquela
broa.
Prossigo a aventura de cruzar o Planalto da Freita. Levo a broa na mão.
O piso irregular, sem caminho, por entre pedras e estevas mais ou menos secas agastava-me o
passo, curto. Progredia mas com cuidado.
No caminho, um homem, já bastante usado, confunde-se com o seu cajado. Pastoreava por ali
três vacas, balbuciava qualquer coisa que não consegui perceber, dou-lhe os bons dias,
responde-me “Ide com Deus”. Sim, irei. Eu e Deus. Deus comigo e eu com ele, Deus à minha
frente e eu atrás dele. Irei com Deus, eu e ele, exorcizar a montanha, exorcizar-me.
O Planalto descampado da Freita passou depressa. Eu corria desencabrestado com a rapidez
de um amante que procura a saciedade noutro par de braços.
Mas o pecado não era o da lascívia. Não era a volúpia que corrompia a pureza de cada
passada, mas a gula. A fome desmedida de degustar cada sensação, a canseira do repasto, o
empanturrar dos sentidos, o engolir à pressa os quilómetros. Era um erro. Refreei a agitação
num exercício de castidade.
Apanhei a levada até Tebilhão. Recordo, como haveria de recordar em outras ocasiões mais
tarde, o percurso e a companhia de quem me havia desencaminhado para esta aventura
maravilhosa. Obrigado Brito! Paro algumas vezes e refresco-me no desassossego daquelas
águas.
Demoro-me o suficiente no abastecimento do Tebilhão, o bastante para comer tomate e
melancia. Depois arrisco a próxima etapa de treze quilómetros.
Pouco depois a separação das provas. Sessenta e cinco quilómetros para a direita, cem
quilómetros para a esquerda. É nestas alturas que tomamos para nós a noção das decisões que
fazemos quando, como me haveria de dizer mais tarde alguém que faz das tripas motivação,
“carregamos no ENTER”
Apanho o Trilho do Carteiro. A descida era viciante, danada de boa. Cá em baixo o rio. Rio de
Frades. E depois sobe, e depois desce, e depois há um túnel, e depois desce, e depois estou no
rio, o rio Paivô.
O percurso do rio é icónico. Seria impossível desenhar o UTSF sem este bocado de paraíso.
Parece que ali passei ainda ontem, mas já foi há um ano. Chovia. Agora não. Estava calor,
muito.
Encontro o Ico que faz pose para uma fotografia. Peço à Paula, a fotógrafa, e ao Marco, que
atrasem mais um pouco a sua correria. Quero tirar uma foto com o Ico ali. Ficámos bem
amigo!
Não devo arrancar os olhos do caminho. É perigoso, mas é inevitável olhar em redor, olhar
para cima, perceber que estou num sítio singular e poucos são os afortunados com uma
paisagem assim. A beleza exuberante seduzia-me sem decência nem educação ou pudor.
Tentava-me assim, sem vergonha, debochada.
E Vénus banhava-se ali, de pé, numa concha gigante, desnudada e branquíssima. Sacudia os
cabelos fartos e anelados quando não os cofiava com as mãos, finíssimas e delicadas, num
bailado requintado a fazer lembrar a métrica perfeita das rimas de um poema de amor.
Olhava-me com ar gentil e despreocupado, a Vénus, e sorria-me. Fico absorto.
Avanço mais um pouco para travar a contenda de passar o rio para o outro lado. Ali é mais
fundo o rio. Uma piscina cristalina, autêntica. Tiro a mochila e o relógio e ofereço-me com
deleite ao instante prazeroso de mergulhar no rio.
Chego a Covêlo de Paivô muito poucos minutos depois das treze da tarde. Descubro ali que me
esqueci de comer no caminho. No rio sentia que o vigor se esgotava. Não era apenas o calor,
era também a falta de combustível.
Abasteci bem, sosseguei o corpo à sombra durante vinte minutos e só depois segui para um
agonizante desnível positivo de 1185 metros em apenas catorze quilómetros, mas como
haveria de fazer notar no fim desta etapa o Carlos Natividade Silva, esta não é uma prova, esta
é “A” prova!
Entrei no trilho.
Era uma subida obscena. E depois outra. Agora estava mesmo muito calor. Sentia que
progredia mesmo muito devagar.
Parei em todas as bicas para serenar a maldade que impunha ao corpo já atormentado.
Agora descia-se.
A serra, no seu porte orgulhoso, gritava-me “corre-me”, mas eu não podia.
Entretanto havia chegado a Regufe. Três mulheres de mãos gastas pelo tempo e pela vida
conversam à sombra com outro ancião. Decido sentar-me com a promessa de um limão.
Vieram três, em vez de um, mas agarrei apenas um, não queria levar mais peso na mochila,
haveria de arrepender-me mais tarde. Enquanto esgoto o limão vejo uma placa que diz “Drave
4km”, mas a minha volta não era por ali. Não podia ser, seria demasiado fácil. Chega uma
quarta mulher, tão velha como as outras, que me mira num de ângulo de 360º. Insistem no
limão, eu declino e parto dali.
Faço novamente um desvio para me refrescar na água e tomar coragem. Vejo a Mafalda.
Haveríamos de brincar à apanhada os dois. Eu apanhava-a nos abastecimentos, ela apanhava-
me no trilho! Seria assim até ao fim.
Raios! Está calor!
Nem uma aragem!
O vento só às vezes saía do seu esconderijo, e era fugaz e mal-sucedido, quase inútil. Passava
depressa como que para não ser apanhado, teria certamente sido proibido de andar na rua
com tanto calor!
Mais um leito de um rio a subir e chego ao cimo para escorregar até ao princípio do inferno.
Em Covas do Monte há um restaurante (deixo aqui esta anotação em consideração ao José
Brito!).
Na entrada em Covas do Monte teria a companhia do Rui Pinho. Ele abasteceu na levada, eu
expulsei-me do trilho para o café na busca de uma cerveja sem álcool. Não havia. Comprei
água. Estava gelada. Sem que o soubesse havia acabado de salvar o dia.
Os poucos habitantes daquele repousado lugarejo perguntavam-me se conseguia subir o
monte. Sorri. Respondi que não tinha outra alternativa. Um diz-me que vai ser muito difícil, e
não consegue contar-me mais nada porque um outro atalha com um “Ui! Ainda tem de passar
onde a cabra matou o lobo!”, e todos riem.
Eu sigo. Sigo rumo ao Portal do Inferno. E que inferno. A abastada subida havia de obrigar-me
a parar por duas vezes. Sentei-me à sombra de um dos castanheiros centenários que
pontuavam a ascensão ao abismo. Sim, um abismo lá no alto, onde o monte troça do esforço
espartano de quem o quer vergar.
O sol impiedoso fazia as vezes do braseiro do Diabo e torrava as intenções infrutíferas de
quem queria progredir naquele lugar.
Começava ali a minha homilia interior. Pregava para mim, só para mim. Nem para os peixes, só
para mim.
A água passeava-se por entre as pedras, ladeira abaixo, convidava-me a partilhar da sua
frescura, mas teria de descer uns míseros metros para lá chegar, e uns míseros metros no
sentido oposto eram a aposta no cavalo certo. Primeiro resisti, mas acabei por ceder à
tentação.
Ia galgando aquela garganta da montanha como se de uma luta intrínseca se tratasse. Uma
resistência intrincada ao esforço v.s. a deliberação da derrota da moléstia do corpo.
O Mestre Moutinho havia advertido no dia anterior que a Freita é uma prova de gestão do
esforço. Não é! A Freita não é uma provação que exija gestão do esforço. A Freita impõe a
gestão do sofrimento.
Fiz as pazes comigo.
Oiço gritos de incentivo. Era o Carlos Natividade Silva. A boa disposição dele contagiava quem
ali chegava, aos quarenta e oito quilómetros.
Havia pizza, estava bem boa! Mas a melancia, que estaria a chegar, quase que de propósito
para mim, estava melhor.
Estendem uma manta de pic-nic no chão. As namoradas que acompanham os atletas nestas
loucuras são umas queridas, e pensam nestas coisas! A manta era grande. Perguntei se podia
aproveitar uma pontinha e acabei por me deixar repousar por uns momentos.
Parto a reboque do Rui Pinho que viria a perder de vista na errática descida ao rio.
Ainda está calor. O suficiente para que a serra se dispa delicadamente. Desnudava-se a
preceito e precipitava-me a determinação de naufragar naquelas águas. Mas não podia, retive
o essencial, a imagem impagável daquelas lagoas, das águas que vadiavam despreocupadas no
leito, e faziam a algazarra própria de quem sai à mercê da libertinagem.
Passa por mim o Marco. O Marco com o mesmo nome do Marco do Triunvirato Romano.
Corria solto o resto da descida, corria decidido ao encontro de Cleópatra que o haveria de
esperar com um sorriso longo e verdadeiro na meta.
E de repente era Drave.
Drave não existe. É um quadro, uma aguarela, no máximo uma pintura a óleo, ou uma forma
de estátua que ali colocaram. Ali, no meio do nada, no centro do meu contentamento.
Afoguei-me Drave abaixo, olhava com atenção cada pormenor, espreitava o relógio, seguia
com pressa, e com pena de não poder ali aquietar os sentidos.
Torno a subir sem resistir a olhar de vez em quando para trás. Teria de certificar-me que Drave
ali ficaria, solidificada, à minha espera, sim, à minha espera, porque depois de jurar que não
voltaria à Freita tão depressa já jurei que a quero desposar em 2016.
Parei cá em cima. Vagueava com o olhar os vales erógenos, assim arrepiados pelo sussurrar do
vento, eriçados tal qual a derme entesuada pelo prazer carnal, quando um olhar, um toque,
um beijo fazem despertar o erotismo da intimidade de dois amantes. Drave confunde a perícia
dos preliminares com o êxtase do primeiro fôlego.
Depois há mais trilho, um trilho inóspito e difícil.
E os Três Pinheiros? Os três Pinheiros ameaçam a segurança de Hércules!
A subida impossível rompe a montanha. Vão três atletas lá longe. Consigo passá-los. O dia
entardeceu, está mais fresco e eu sou bom a subir.
A cadência do passo fazia lembrar o bambolear sensual de uma mulher bonita cuja marcha
arrendonda e faz pender a saia colegial, ora para a direita, ora para a esquerda
Paro por momentos, quero ver onde estou.
A beleza é insuportável.
Agora era a descer pelo trilho, acho que é o dos Incas. Mergulhava naquele pedaço de terra
como se mergulhasse nos lábios apaixonados de uma mulher, num beijo acrobático.
O relógio apregoava a hora tardia. Póvoa das Leiras via-se logo ali, mas o caminho não
acabava.
“Eu quero passar no controlo!” Era esta a voz de comando que dava corda ao meu mecanismo
propulsor e marcava a cadência, primeiro como uma nota mental, depois exteriorizada com
um cuincar que casava o suplício com o encanzinamento.
“Eu vou fazer isto!”, repetia.
Uma voz alerta-me que vou conseguir, “Ainda dá!”. Respondo que tenho de chegar à aldeia, e
a senhora, que acompanhava um outro atleta e que haveria de cruzar-se uma vez mais comigo
já no final, contrapõe que o abastecimento “É já aqui em cima, junto daquele carro!”. Avistar o
PAC foi o bálsamo mais apaziguador que poderia tomar naquela altura. Havia conseguido
chegar, e com uma folga, pequena, mas uma folga.
Dou o número de dorsal, apresso-me para reabastecer a mochila, trocar de roupa, trocar de
meias. Os pés atiçam a piedade, a misericórdia e ao mesmo tempo a sanguinolência de Janus.
Opto por não trocar as sapatilhas. Espremo um limão para juntar a dois golos de água das
pedras que havia mandado na mochila também. Provo uma rodela de chouriço e dizem-me
que devo partir.
E eu parto. Parto desgovernado. Não vou sozinho, é bom assim. É de noite, noite cerrada, e eu
vou à Besta.
A Besta é a escalada ao mais profundo poço da nossa motivação.
Passava das dez da noite.
Apetecia-me uma fatia de bolo de maçã e noz com canela. Um bolo cozinhado pelo calor de
três pares de mãos carinhosas e inquietadas comigo. Um bolo que reconforta o estômago e a
essência do ser. Apetecia-me a textura do regresso a casa, os olhos preocupados de quem me
recebe à porta, o mastigar aquela doçura do bolo ainda quente sobre a mesa, numa noite de
100 km em outubro. Mas faltavam-me ainda outros suplícios e tiranias que haviam de adoçar
as recordações da minha Elite Trail de cem quilómetros.
Depois fico sozinho. E subo a Besta acompanhado por mais memórias. E que memórias!
Permito-me emocionar-me.
Sento-me por breves instantes para beber da Besta. Sim, a Besta havia de tratar-me da sede, a
sede de fôlego, da vertigem da conquista. Havia de beber o seu sangue, sugar o seu âmago, a
sua natureza.
A Besta tem aranhões. Muitos. Eu não gosto de aranhões, tenho-lhes aversão, mas eles
espreitavam-me só para dizer “Olá!”, depois fugiam rapidamente da luz do frontal.
Olho para cima como que a investigar onde estarei e encontro a Lua. Está perto o fim da Besta.
Trepo com força redobrada, quero abraçar a noite.
A Lua, assim enquadrada com as duas paredes da Besta, transfere-nos para dentro de um
quadro vivo - A imagem da Besta, paradoxamentel tão cruel e feroz como bela e apetecível,
em perspectiva de baixo para cima, alumiada entre duas paredes que se esgotam na escuridão
da noite onde apenas sobressai a Lua quase cheia.
E já estou no cimo do monte. Vagueio o olhar pelo escuro. Procurava talvez um aviso, um
conselho, um consolo. Procurava mais memórias. Era Morpheu essa noite. Era um pastor de
sonhos. Eu pastoreava saudades.
Quatro camaradas haviam desistido logo depois da Besta. Estava lá a carrinha da recolha.
Perguntam-me se continuo ou se quero aproveitar a boleia.
Não quero desistir. Eu quero conquistar a Senhora Dona Freita, lembram-se? Roubar-lhe um
beijo, provocar-lhe um sorriso nervoso que faz cócegas na barriga, inflamar-lhe o peito,
impressiona-la com o galantear cavalheiresco atirado do cimo da pose portentosa da bravura.
Lanço-me no serro, por aí abaixo, quero chegar a Manhouce.
O perfume das cores do dia quente dá lugar ao perfume da noite.
Desço o pendente vertiginoso até desembocar no largo do coreto. Atiro para quem está que
“Eu tenho de comer! Não comi nada de jeito no último abastecimento.” Chego com pressa de
me acercar, mas também com pressa de chegar a horas ao controlo na Lomba.
Quero sentar-me, quero comer, quero esticar as pernas e aliviar o esqueleto. Mas a Carmen
intercede por mim e afronta a vontade do corpo em quedar-se no conforto. Não posso
aprisionar-me ali.
Num momento de lucidez, como melancia, bebo um café, levo um pão no papo e outro no
saco e desfruto da lembrança da Senhora Dona Carmen, da bondade que deixa transparecer,
até à Lomba.
“Eu vou acabar isto! E vou acabar porque eu quero acabar. E nada me deitará abaixo!” Agora
sim, sinto-me bem, não está calor, mas vejo mal, avanço com cuidado.
São oito quilómetros.
Vejo a Lomba, está logo ali, mas as “moutinhadas” foram pensadas para aproveitar os trilhos.
Havia um caminho mais curto? Havia … mas não era a mesma coisa!
Parecia-me aquele o caminho que resultou do “trabalho de arqueologia” que o Mestre
Moutinho havia falado no briefing.
Passo mais uma linha de água e subo as escadinhas, os socalcos que me haveriam de levar à
canja, quente e salgada, a uma bifana, uma cerveja que arrisquei beber e que afinal não me fez
mal, e um café. Fui muito bem tratado na Lomba, como de resto em todos os abastecimentos.
Encontro o Ico. Preferia não o ter visto ali, mas o corpo tem destas coisas e às vezes obriga-nos
a parar. Mais dois dedos de conversa com o Rui Pinho, uma ou outra laracha e sinto-me a
arrefecer. São as pernas a dizer que devo seguir caminho. Visto o corta vento, para o voltar a
despir daí a nada, porque a subida seguinte aquece bem, e rasgo a noite com o azimute
orientado para o Merujal.
Lembro-me tão bem da saída da lomba como se a tivesse já feito nesse dia. Um trilho à direita
que sobe novamente ao Planalto.
Olhei o céu.
Indescritível!
Um fundo negro, nítido, impresso com um milhão de feixes de luz em contraste pronunciado.
Mas não havia lua.
Magicando na improbabilidade de ali não ter espectadores, desligou o candeeiro da mesinha
de cabeceira, a Lua, e deitou-se para dormir.
O escuro opaco e angustiante pactuava com a minha falta de visão nocturna. A descer é
sempre pior. Vou, mas com muito cuidado.
Da Lomba ao Merujal são dez quilómetros. Nem mais nem menos, “São os mesmos do ano
passado!”, pensei. Estava a meio, na aldeia. Agora vinha o PR7. Percebia-se uma ténue e
delicada claridade do lado do levante. Carrego a barcaça com uma mão cheia de propósito,
agarro o timão e entrego-me a governar mais cinco quilómetros.
Entretanto a Freita abria a janela, despertava, desgrenhada, mal composta. Haveria de
arranjar-se daí a nada para mim.
No Merujal reencontro a Carmen. A Carmen reconcilia-nos da agitação. Sento-me. Como
melancia, é já a única coisa que consigo comer. E esta teve um gosto especial. Faltam-me doze
quilómetros, dizem-me que são três a subir e nove a descer, e eu queria subir doze e descer
nenhum.
Desço os nove quilómetros para estragar o resto que ainda não estava estragado. No caminho,
já cá em baixo, interrogo a quem passa as horas. “São oito e meia!” respondem-me, com
apreensão e distância e olhar investigativo como se me perguntassem “Mas de onde vens tu
nesse estado?”.
Ao passar o portão da escola o corpo tremia, mas não era debilidade, não era o corpo
exaurido, era um êxtase de felicidade, como se fosse ali ressarcido da coragem, da luta que me
havia feito chegar.
Entro no pavilhão. Olho e está lá a Flor Madureira, está lá a Carmen, está lá o Moutinho, está
lá gente que me acalenta a alma.
Gritei ”EU CHEGUEI!, EU CHEGUEI!”. Gritei uma vez, e duas, e três, bati com os bastões como
se quisesse incendiar o Olimpo, era a minha Haka, gritar e bater com os bastões. De repente
tinha tanta força!
Passei o pórtico.
E depois chorei, qual menino de sua mãe, e lavei com um par de lágrimas o resto da Freita que
ainda trazia estampado no rosto.
PS1 – Obrigado a quem tem de suportar a inquietação de não saber nada de mim enquanto
ando extasiado no monte e ainda assim me apoia e dá alento para vencer “as Freitas” que
Deus coloca no meu caminho, e ainda me faz a mousse de chocolate melhor do mundo para
quando eu regresso a casa.
PS2 – Obrigado a quem me ajudou a treinar, a quem me acompanhou, e me deu conselhos e
me ajudou a delinear estratégias. Obrigado pela companhia tão boa, mas tão boa no TT (Brito
e Miguel temos de registar a patente dos Treininhos da Treta!), nos treininhos lentos de
sábado de manhã com a companheira de corrida e da vida no “nosso” campo de treinos do
Bonito – Barroca (Obrigado Dias), no treino longo com os meus amigos CASPIANOS, e em
todos os treinos que moldam a minha vontade de querer ser uma pessoa melhor.
PS3 – Obrigado à Luzinha que me envolve e me guarda, que tomou conta de mim na Freita e
me torna uma pessoa abençoada.