Miguel Gameiro terminou a sua primeira prova de 3 dígitos no UTAX, foram 106 km de muitas sensações, que poderão ser lidas e sentidas no texto que se segue de sua autoria.
Ao Miguel Gameiro os nossos mais sinceros PARABÉNS Cáspicos.
O meu UTAX já acabou.
Eu queria que o meu UTAX durasse todos os dias, mas já acabou.
A decisão para correr o UTAX não foi minha. Foi a Senhora Dona Freita que tratou de tudo, que decidiu por mim, que me inscreveu, que me explicou que deveria correr o UTAX, que me inspirou o alvoroço de desejar conquistar três dígitos.
Primeiro veio o entusiasmo, ainda sob efeitos de uma euforia anestesiante, fruto de um convívio entre amigos por terras de Merujal.
Depois foi as férias, como que a adiar a responsabilidade da preparação para uma empresa deste tamanho.
Depois foi as conversas com as pessoas que me querem bem, que sentem a alegria e o contentamento dos meus sucessos, que trilham comigo as minhas dificuldades, que me orientam no treino, que me ajudam e alentam a vontade de prosseguir, de persistir na procura de novas sensações. As conversas e a partilha com as pessoas que exaltam as minhas forças, que ao acreditar em mim deitam por terra o enfoque negativista e centrado na derrota que, lamentavelmente, outros reincidem em insistir.
Depois foi a doce companhia que neutralizava a azedia dos treinos. Os meus TT (Treininhos da Treta, assim apelidados por um camarada), de 40 minutos, à hora de almoço, que pouco acrescentam às pernas o que preciso, foram, sempre, decisivos para a preparação do coração. Não do músculo cardíaco, do outro coração, aquele que sente a amizade e o companheirismo. A companhia nos treinos de sábado de manhã, a incursão a Fátima com o “V” de volta, as mãos da Fisiomassagem, e todos os momentos de satisfação que haveria de carregar comigo foram o condimento necessário e que havia de dar ao pórtico da meta um gosto especial.
E depois foi uma pilha de nervos!
E de repente era noite, e era frio, e era chuva, e eram os primeiros metros, desenhados a passo curto.
A primeira interminável subida aconteceu.
Depois era o trilho, e era a descer, e havia de me levar no caminho do Catarredor. Queria ver, certificar-me que aquela casa, aquela específica e não outra, tinha o fumo na chaminé, e os mesmos frascos e tarecos, e o mesmo alguidar à porta, assim quieto, como das outras vezes, quase fossilizado. Era preciso ter ali uma moldura, um caixilho a advertir para aquela imagem.
Não havia café no Talasnal, mas havia chá. E estava quente, o suficiente para acalmar o grito visceral que escondia dentro de mim.
Encostei ali um dos bastões que se havia partido depois do Vaqueirinho e, com o outro a fingir de cajado, segui para a parte do percurso que não conhecia.
Depois era a subir. E eu subi. Subi estoicamente a passo largo, mas confortável, ainda!
Disse nesta altura “É sempre a subir … a pés juntos!” e os sorrisos e o olá contagiante de quem corre o mundo a pé, sempre juntos parece que me preencheram o peito. Segui.
Deixei o Observatório de Vila Nova e embrenhei-me novamente na noite. Eu queria que a noite acabasse. A noite revelava o percurso austero, agora a descer.
A noite envolvia-me a par com o nevoeiro, aconchegava-me com uma leve brisa, brincava às escondidas e à cabra cega comigo, punha-me pedras e paus no caminho, e pregava-me rasteiras e partidas, e divertia-se assim, a marota da noite que não acabava.
Pouco depois Vila Nova.
Em Vila Nova, ao romper do dia, ainda escuro, tive a primeira forte emoção. Um camarada comia uma sandes. Perguntei-lhe se era do abastecimento a sandes. Respondeu-me “Não, trouxe de casa. Queres metade?”
Não! Eu não quero metade. Não quero metade da sandes. Quero um feitiço, uma magia que possa replicar este gesto em todos os cantinhos do mundo todo onde possa caber um pouco de humanidade.
Emocionei-me. Estava vulnerável. Emocionalmente vulnerável. Não conseguia comer ali. Mas havia chá, e quente, e doce. Enchi a barriga de chá como que para afogar o grito que se avizinhava gutural.
Precisava despachar-me. Espinho distava o tempo de umas quantas cascatas, e ribeiras, e difíceis pegadas abútricas.
Gondramaz é linda.
E depois era o Espinho. Havia conseguido chegar dentro do tempo. Mas tinham dado mais uma hora. Tinha uma folga cómoda.
Cheguei à Lousã perto do meio-dia. Comi, lavei pés e sapatilhas, troquei as meias e bebi uma cerveja sem álcool preta que havia mandado dentro do saco, com o respetivo abre cápsulas. Soube-me tão bem! Gastei ali 35 minutos com preparos, entre trocas e decisões.
Soube ali da história do Ricardo que vendeu os 100 quilómetros. O Ricardo que entregou o corpo à penitência de 100 quilómetros pelo Santiago. Obrigado Ricardo que eu não conheço por fazeres parte do mundo.
Por entre milhões de pensamentos eis que me descubro novamente nos trilhos. Todo o percurso desde a Lousã à Cerdeira, pela levada, potenciou as recordações de outros momentos que a vida exigiu de mim. Eu já havia feito aquele percurso em família, numa caminhada de domingo, e foi tão bom, e as recordações da família neste momento são tão boas.
Depois foi o Candal, e só depois a Cerdeira.
A Cerdeira está diferente. Falta-lhe uma placa que dizia “Não há dinheiro que pague este silêncio!” algures a meio da íngreme e errante escadaria.
Não há dinheiro que pague, acrescento eu, a experiência de sentir o silêncio, não apenas a forma mais terrena da experiência sensorial da audição, mas a prática do sentir o vazio.
Ali completava os 70 quilómetros. E 70 quilómetros é um número mágico para mim.
Eu queria gritar, eu queria querer poder soltar as entranhas, vomitar tantas coisas que trazia presas na garganta por cordéis de medo, eu queria tanto, mas o meu corpo não deixava, teimava em segurar o grito, um grito paradoxalmente áspero e cómico, feroz mas compadecido, um grito desesperadamente esperançoso.
Abasteci, o possível. Sabia que se adivinhava uma árdua subida alinhada por pinheiros, uma subida gorda e preguiçosa, e não me enganei. Ainda lá estava desde o ano anterior. Não desistiu de esperar por mim, não se cansou da emboscada que havia ali montado para mim.
E depois, só depois da Cerdeira, começou o meu UTAX.
Talvez o meu UTAX não tenha começado ali.
E se o meu UTAX durou três anos? Talvez tenha durado mais que três anos.
O meu UTAX havia começado, afinal, num primeiro esboço de uma corrida que resistiu nove minutos. O meu UTAX era muito pesado. O meu UTAX de mais de 100 Km, já havia pesado mais de 100 Kg.
E agora estava ali!
Emocionei-me.
O caminho da Cerdeira até à Aigra, oito quilómetros, fi-lo sozinho, “Eu e o Trilho”. Haviam de acusar-se os 8 quilómetros mais compridos e demorados da prova.
Nos 8 quilómetros interminavelmente difíceis, e a caminhar, desencontrei-me. Perdi-me de mim. Fui dormir e sonhar com todas as alegrias com que a vida me presenteou, com as angústias que me sufocam, e me travam o peito, com os medos, e os olhos, e os risos, e … e a roda gigante do caleidoscópio natural dos sonhos em catadupa.
O meu corpo apiedou-se de mim e deixou então que o grito evaporasse, que deixasse mais espaço em mim, que me deixasse arrumar um pedaço de coração naquela gaveta que ele ocupava por inteiro. Mas o grito não se ouvia. Era frouxo. O sentimento era intenso, o choro era purificador, catártico, mas fraco, uma espécie de titubear absurdo.
Esvaziei-me ali.
E havia tanto ainda para descer! E eu já não queria descer, só queria subir.
Depois foi a sopa.
Depois foi fazer contas. Contas às horas, e aos quilómetros, e contas à vida.
Parti dali com dois camaradas que tentei acompanhar o mais possível. Desabafei que era a primeira vez que fazia a distância de 100 KM, e seria a última, enganando-me a mim mesmo, sabendo que hoje sabia que voltaria, claro que voltaria!
Depois da Pena iniciei o meu movimento interior de abnegação. A primeira subida, na companhia dos dois sócios de viagem, aconteceu ainda de dia. Havia depois o galgar do monte até aos Poços da Neve. Com a luz fraca valeu-me o frontal do amigo que eu tentava não largar desde a Aigra.
Esta subida até à Capela de Santo António desafia a perseverança e a fortitude de Zeus.
Há uma renúncia espontânea do corpo e do sofrimento que se sente quando o elemento volitivo do querer é forte, é muito forte. E eu queria. Eu queria muito.
Mantive a constância do passo, deixei para trás muitos atletas aproveitando a boleia do frontal. De repente sentia-me forte, era o segundo fôlego, ou o terceiro, ou o quarto, ou então a atração do corpo pela magia da serra, que ora me puxava, ora me empurrava, mas que me ia acudindo até lá acima.
Na descida para o Coentral larguei os militantes com quem houvera partilhado a tomada do cabeço. Eles seguiram, eu só queria subir, não queria descer mais.
A descida sinuosa faz-se tão bem de dia. Mas já era tão de noite e o Coentral insistia em não aparecer. Fazia de propósito certamente, para me irritar, para me castigar. Via as luzes lá ao fundo, queria pensar que era Castanheira, mas, sem que o soubesse, faltavam-me ainda duas horas e meia a palmilhar trilhas e veredas para lá chegar.
Demoro-me à conversa no abastecimento, entre uma sandes de chourição e um ou outro golo de coca-cola. Parto desenfreado para tentar apanhar os dois atletas que larguei aquando da descida, mas sem sucesso. Faço o caminho em modo solitário.
Falta pouco.
Vou desembocar numa estrada e consigo ver do outro lado Castanheira de Pêra.
Teria ainda de passar o rio. Atrasei-me um pouco dentro de água, os pés pediam, as coxas, essas, agradeciam a minha bondade.
Depois subi o resto que havia para subir, e depois o resto que havia para calcorrear, e depois cruzei a meta, e depois …
… tinha acabado de fazer o meu UTAX.
PS1 – Obrigado àqueles que são a minha força anímica, que me dão o alento e a robustez para que todos os UTAX da minha vida possam acontecer.
PS2 – Obrigado ao camarada que me ofereceu metade da sua sandes, obrigado ao Ricardo por existir, obrigado ao Iosef Bletan por ter um frontal espetacular, obrigado ao outro camarada e sócio que depois da Pena esperou por mim, e que acabou depois por ficar para trás. Obrigado.
PS3 – Obrigado àqueles que me seguiram on line e que vibravam e sofriam comigo cada etapa.
PS4 – Obrigado ao Brito, ele sabe porquê!
PS5 – Obrigado ao Gustavo que não arredou pé enquanto eu não cheguei.
PS6 – Obrigado à luzinha que eu não vejo, mas que me acompanha e que cuidou de mim no UTAX..