A tarde era de nervos. Dormir? Nem pensar! Era preciso que as horas passassem, depressa. Era preciso acabar logo com a ânsia, com a impaciência.
Em Miranda, primeiro um café e uma prosa, o Homem, o Vitorino Coragem, o Tiago Santos e eu. Já havia cumprimentado o Ico e o Ricardo e mais uns quantos amigos destas andanças. Um esforço frustrado de seguida para assistir ao briefing e a companhia do António Morais e restante comitiva de terras de norte. E o tempo passou a voar afinal!
Outro café e os Ramones já afinavam um “Vamos embora!”.
Está bem! Vamos embora então. Vamos até onde der.
Miranda do Corvo – Gondramaz (10km)
O meu UTAX começou devagar. Num trote tímido. Como uma abordagem, a medo, como se de uma tentativa ansiosa de seduzir uma mulher bonita se tratasse, com o cuidado de a conquistar com a sensualidade dos sentidos que se cruzam num repasto primoroso.
O meu UTAX era então um banquete sumptuoso, numa mesa posta para dois, de toalha de linho grossa e candelabro aceso. Começou devagar com a simplicidade contida em duas flutes de champagne de textura soberba, que tilintam sob a mestria de duas mãos, como se se beijassem em espiral, enquanto uma troca de olhares dá o mote ao início de uma conversa.
- “À nossa! Amo-te.”
Havia quem corresse rápido, com a pressa de se adiantar. Eu não era capaz.
Era como se num restaurante da moda alguém se precipitasse num qualquer prato principal sem antes se ter entregue ao prazer de um “amuse-bouche”.
O caminho era fácil. Cerca de cinco quilómetros até ao Espinho, muitas palmas e olhos curiosos.
A indulgência do último trago do champagne impunha agora que desdobrasse o guardanapo, também de linho, e grosso, e o pousasse no colo. O cardápio anunciava que iam servir-nos as primeiras entradas.
Vol-au-vent de camarão e molho de sapateira em salada de agrião
Vieiras crestadas com azeite de alecrim e laranja
(Palácio da Brejoeira, verde 2011)
O trilho, as ribeiras, a floresta fechada, os troncos a servir de ponte, os risos incontidos da água que acordara à nossa passagem, o palco de mil sonhos onde os castanheiros dançam num bailado plácido e inerte com os loureiros, os carvalhos altivos que riem e deixam cair algumas folhas que rodopiam à frente da luz do frontal tal qual uma bailarina esguia e elástica se atira numa “pirouette” em “demi pointe” na mira de um holofote.
E depois Gondramaz. E aquele café que já não há, que já ninguém faz. O café a fazer lembrar o café das borras que a minha avó fazia numa cafeteira encarvoada em cima de uma trempe, ao lume, no chão. Um lume mortiço, entorpecido, que ia alimentando com as carumas de pinheiro e um ou outro cavaco enfastiado, num canto de parede, por baixo de uma chaminé improvisada, a fazer de conta que era uma lareira, e que ia aquecendo a alma. Também este café me aqueceu por dentro. Café e bolachas. Só faltava o banco de pau, cinzento, do meu avô e a manta pelas costas para enganar a corrente de ar.
Gondramaz – Lousã (12km)
Mas ainda não haviam acabado as iguarias de entrada …
Triologia de fois gras com pêra bêbeda, amêndoa torrada, e gelatina de vinho do porto
(Montes Ermos Reserva tinto 2009)
Corria ainda aferventado e de fôlego ainda folgado. O café e as bolachas haviam-me aguçado o alento.
Bebia cada pedaço do trilho, embebedava-me com o perfume da serra outonal, da serra corpo de amante, de cada curva e cada recanto que esconde o mistério de ser mulher, num quarto escuro onde os abutres se misturam com os corvos num penedo e se lambuçam numa comezaina.
Depois desce-se para a Lousã.
A mesa copiosa estava posta no Hotel Palácio. E aos vinte e dois quilómetros a mesma rotina que me havia de acompanhar em todos os abastecimentos: Pousar os bastões, deixar a mochila em cima para não me esquecer deles, abastecer bidões e comer.
Já havia gente a desistir na Lousã. E isso deixava-me apreensivo. A primeira parte havia-se revelado um excelente mas perverso aperitivo.
Lousã – Cerdeira (11km)
Creme de cogumelos e castanhas com terrina de caça afogada
Saí do Hotel da lousã com a bússola apontada à parte do percurso que me é mais fácil de fazer. É-me familiar. É como se tratasse por tu cada esconso de caminho, cada pormenor, cada cenário.
Salto o rio Arade e subo para voltar a descer já junto ao restaurante O Burgo onde se come muito bem (deixo esta nota especificamente para o José CASPA Brito), sem antes beber na fonte da esperança. Bebo o ânimo necessário para ter como expectativa, como horizonte um amanhã melhor, bebo a esperança enrodilhada noutras virtudes que hão-de saciar um amanhã sedento do Bem.
Mais à frente a levada cumprimenta-me, diz-me que não me vê há algum tempo e corre a meu lado durante um bom bocado. Trazia consigo o arranjo musical das águas que pareciam tocar uma bossa nova, e eu ia trauteando “Tall and tanned and young and lovely the girl from Ipanema goes walking …”. E às vezes chove e o ar arrefece.
Estou prestes a chegar ao Candal. No Candal há um esconderijo, logo ali antes de chegar àquela Loja do Xisto que tem uma senhora simpatiquíssima. Um esconderijo com uma mesa de cimento onde apetece lanchar num dia de verão de Julho por baixo da latada de uva morangueira, na companhia das três mulheres mais bonitas do mundo. Para dizer a verdade não tenho a certeza que a uva seja morangueira, mas agrada-me pensar que o é, e que exala aquele cheio magnífico por alturas de Setembro vindimeiro.
No Candal apresso-me para a bica de água fresca que ali zicha. Bebo, encho o softflask e arriba para a Cerdeira. Subo com outro atleta que acompanho desde antes do Candal e desço, como um menino que tem um brinquedo novo, o trilho até à ribeira.
Outra subida e entro no abastecimento. Está quentinho ali. Apetece ficar. Estou com sorte, penso, há sandes com chourição. Os abastecimentos estão-me a correr bem, “hoje não tenho de enjoar com o doce”.
Cumprimento a Patrícia e o Diogo Barros e agasalho-me com o fecho do corta vento até acima para sair para a etapa que se adivinhava inclemente.
Cerdeira – Povorais (15km)
Menu de degustação
Primeiro prato:
Bacalhau confitado em azeite perfumado com alecrim e sabores cítricos e crocante de broa, puré de marmelo em tons da Índia dos descobrimentos, nabiças temperadas com espuma do confit, escabeche de vinagre balsâmico, e castanhas de São Martinho a cavalo
(Casa dos Zagalos Reserva tinto 2010)
Tinha sido este o troço do percurso que mais me havia custado fazer na edição anterior. Bem abastecido abandono sozinho o PAC da Cerdeira para a subida indolente, a subida gorda e preguiçosa, como a baptizei antes. Sabia o caminho de olhos fechados. Sabia exactamente o que me faltava penar até lá acima!
O frio adensa-se. Vou poupando os joelhos com a ajuda dos bastões até ao topo. Depois vira-se à esquerda. Consigo alcançar os atletas que vão lá longe e mantenho-me perto, a reboque.
Ali em cima o vento estava furioso. Gritava-me aos ouvidos, colérico. Apressava-se, acotovelava-me, abria caminho à força. A aurora despertava desagradável, com o mau feitio próprio de quem acorda contrafeito.
Uma correria de cento e doze quilómetros afunda-nos até à porta do Cabo das Tormentas que carregamos connosco a cada etapa, e chegar ali ao cimo, àquele cimo arrogante, àquele cimo borrascoso agora aflito, onde do promontório o espectro de um gigante camoniano insiste em ulular, é como que cruzar o pátio do Adamastor a caminho das Índias.
O vento sacudia-me. “ - NÃO!!! Não me conseguirás derrubar. Corre nas minhas veias o sangue de Viriato, e a minha alma tem a mesma sede dos navegadores lusos. Atrevo-me nesta serra acima, neste serra adentro com a audácia, com o mesmo desassombro das velas desfraldadas que da ocidental praia lusitana aproaram na direcção do levante”.
Era como se empolasse o peito e desferisse um feroz avanço corpo adentro do tenebroso gigante sem coração e transmontasse o fado tão português das histórias trágico-marítimas.
Passar para o outro lado era voltar ao abrigo. Por pouco tempo!
Depois entra-se no trilho. Este é um trilho inóspito e pérfido. Tropecei mais vezes ali do que no caminho todo. Juntei-me a um grupo que caminhava rápido e ia fugindo na direcção de Góis.
E eis que chega “A” descida, não uma descida qualquer, mas “A” descida cuja inclinação só tem semelhança no prumo recto e alinhado do azeite a cair ainda quente das ceras no lagar, um lagar dos que têm o “ladrão”, onde se usa a verguinha de sabugueiro para perceber onde o azeite se separa da água. Um lagar onde se prova o azeite novo com um naco de pão que se leva num dos bolsos e se tolda o estômago de seguida com uma laranja arrecadada no outro. “A” descida onde havia abandonado o meu único par de pernas o ano passado com tanto ainda para calcorrear!
Deixei ir o grupo e fiquei para trás, com o cuidado necessário para não estafar ali os quadríceps. Depois a ponte e depois sobe tão íngreme como se havia descido.
Passei pela varanda onde me houvera sentado há um ano a comer uma merecida sopa e a deitar contas à vida. Desta vez não se via vivalma.
Faltavam ainda mais sete quilómetros para o abastecimento e pouco menos para a visita à Pena, ali estendida entre dois montes. Mais uma fonte, mais uns tragos de água fresca e bidões cheios e ala que o caminho agora é a subir, e a subir encontro o Rui Pinho e o Tiago Santos. E fico tão contente por ver o Rui, o Rui que faz anos. Dou-lhe os parabéns e sigo com eles e com o José Jesus, que praticamente cozinhou o caminho de mais de cem quilómetros comigo, e mais dois camaradas que apanhei na fonte na Pena e que havia de ter por companhia até Castanheira.
O abastecimento era logo ali, a seguir à aflitiva subida depois da Pena.
A poucos metros ouço “ Vai Miguel, tens aqui canja quente à tua espera!” Era a Patrícia Barros. Que bem me soube a canja. Que surpresa tão boa.
A canja dos Povorais salvou-me o dia. Confortei o estômago, repeti a canja e hidratei com mais uma malga de caldo. Só o caldo, quente.
E saí de Povorais.
Povorais – Coentral (10km)
Menú degustação
Segundo prato:
Perdiz brava, bêbeda em dois vinhos generosos do douro, sua redução em sumo de laranja e especiarias, recheada com suas miudezas em paté campestre, boletos, e apontamentos de pistacho, na companhia de tatin apimentado de maçã reineta, e compota agridoce de manga
(Ramos Pinto Duas Quintas Reserva 2011)
Larguei Povorais, prendi-me ao caminho para subir ao ponto mais alto dos cem quilómetros.
Extenso, extenuante, impassível, imperturbável. Era assim o cabeço que eu espicaçava com os bastões numa frenética caminhada nórdica. Subo num esforço rigoroso o estradão até ao Santo António das Neves, absorto, confiado em segredo na volúpia da carne, da cama, do caos da respiração sôfrega de duas bocas inquietas, de dois corpos ávidos desapossados do justo equilíbrio dos sentidos, subia ausente, subia apartado do mundo. E novamente a mesma trama, o mesmo enredo de bruma e de vento que assopra desapiedado.
E nisto ocorre-me Sérgio Godinho.
Ó ei, deita a mão a este remo
além, são só paragens do demo
quem sabe, é só um abismo suspenso
só vendo, mas o nevoeiro é denso
Será que existe mesmo o levante?
Haverá quem um dia nos cante
Ando às ordens do nosso infante
e cá vou fazendo os possíveis!
Sim, vou fazendo os possíveis para não quebrantar o corpo. E entretanto vê-se a capela. Faço pose para a fotografia junto com os dois companheiros de viagem para descer depois ao Coentral.
Coentral – Castanheira de Pêra (10km)
Menú degustação
Terceiro prato:
Entrecotte maturado nas brasas, fumado com zimbro, com tempura crocante de legumes e camarão, chips de batata doce polvilhadas com parmesão, e coulis de romã
(Ermelinda de Freitas Syrah 2007)
O café no Coentral estava fechado! A probabilidade de beber uma água das pedras com sumo de limão expirou logo ali.
Abasteço debaixo de uma chuvarada grossa e persistente. Não me demoro quase nada, a seguir vem o PAC principal e o caminho é fácil. A dificuldade agora é o tempo taciturno e ensopado .
Cruzo os mesmos atalhos do ano anterior para chegar a Castanheira. Passo o Poço da Corga, que não sei porquê me faz lembrar sempre a Corga da Chã e um amigo de Abrantes, desço sob a ameaça da lente do fotógrafo o dique, atravesso o campo que desta vez não está alagado o suficiente para me enterrar até aos joelhos e estou logo nas piscinas naturais da Praia das Rocas e com sessenta e oito quilómetros de prova com uma folga de duas horas e um quarto.
Pego no saco, gasto meia embalagem de vaselina, troco a camisola, besunto os pés carcomidos com creme que me dispensaram porque, não sei bem como, não mandei o meu (obrigado camarada por me emprestares o teu!), troco as meias e abasteço a mochila e bebo a minha rica cerveja preta sem álcool. É o que me sabe melhor. Ou esta cerveja ou a água das pedras. E depois o protocolo da canja e do caldo, só o caldo da canja, quente. E revejo o Josef Bletan. O mais interessante é que ele também me reconheceu. Foi ele e o frontal dele que me trouxeram monte acima em 2014. Não me esquecerei de ti Josef.
E depois meto uma barra do patrocinador na mochila e às 14H33 arranco do abastecimento.
Castanheira de Pêra – Talasnal (14km)
Ardósia de queijos, pão de noz e marmelada de cenoura
(Niepoort LBV 2011)
O gráfico de altimetria calculava uma subida malvada até às eólicas. Já a tinha subido duas vezes nos últimos dois anos mas nunca me pareceu tão espinhosa como este ano.
Obrigava-me a focar no caminho, a não perder o ânimo ao olhar para cima. Não precisava de procurar as fitas, bastava-me cravar os olhos nos muitos buracos das pontas dos bastões que ali deixaram marcas enquanto o que restava das pernas de uns quantos bravos ia arrastando o que restava do seu corpo até lá acima.
Vejo o Rui Pinho e o Tiago Santos lá longe. Ainda grito, mas é impossível darem por mim.
Esta subida fi-la com o Brito. Lembrei-me dele. Ainda havemos de pisar aquele chão juntos Brito.
E o horizonte já se adensa outra vez, e encurta-se, já faz frio novamente e chove. Chove assim miudinho. As eólicas vêem-se mal e apenas até um quarto desde o chão, só o chiar denuncia que ali estão. O chiar característico da volta das hélices que encontram eco no chiar do mostrengo de Pessoa que também chiava a cada três voltas. O Mostrengo imundo e grosso do fundo do mar que agora trouxe o breu na forma de nuvem. Lá em cima não se vê nada a mais de dois palmos do nariz e o vento empurrava-me como que a querer brigar, como um puto reguila e tingido de raiva que dá empurrões para forçar a briga, incitando o outro para lhe despertar a agressividade. A chuva engrossa. Em menos de um minuto fico completamente encharcado, de novo.
Agora é estradão. Acelero a passada e tento de quando em vez “corriscar”. A chuva não pára, e está frio. Mas passei a casa do Guarda Florestal, vou começar a descer.
A floresta perfilada matematicamente na rampa a perder de vista abrigava-me.
As folhas douradas indiciavam a passagem de Midas por ali. Tratava de ensaiar o colorido certo para decorar o Outono. O Outono das castanhas que ali abundam, que me espreitam por uma nesga, assim arrumadinhas dentro do ouriço. O Outono das primeiras chuvas que faz apetecer comer o cheiro a húmus. O cheiro daquela terra molhada, amassada, tão preta! Degustar cada sensação como num copo onde um vinho tinto opaco chora lágrimas de alegria quando um gesto hábil o faz rodar e os filetes escorrem em abóbada libertando os seus compostos aromáticos desorientados pelo redemoinho. E depois cheira-se profundamente, inspirando devagar a elegância do aroma, as notas de fruto seco em passa, as especiarias, as amoras, o chocolate preto, cheira-se recostado num cadeirão de veludo vermelho do Hemingway em Cascais perante a desvairo da imagem de uma princesa que ali está sentada à nossa frente e nos sorri, e nos entrega o seu olhar tão meigo quanto sedutor, engalanado com o rimel desenhado de forma perfeita a esbarrar no risco, também preto por cima da pálpebra, e dois pares de mãos que ensaiam com ternura gestos cúmplices.
- “Amo-te”
E mais uma escorregadela, quase caía!
Descia com uma destreza apenas subornável pelo receio de cair por ali abaixo. Com a ajuda dos bastões, de lado, derrapava como se brincasse a deslizar na neve. Faltavam-me os skis. Faltou indicar na lista de material obrigatório os skis.
E já estou no caminho do Catarredor. Sempre gostei de fazer este trilho. Depois do Catarredor vem o Vaqueirinho e a tal casa que eu gosto tanto e que tem sempre o fumo na chaminé, e uma menina que descobri que se chama Bárbara. Já não tem à porta a mesa e o alguidar. É pena! No Vaqueirinho aproveitei para lavar as mãos e as luvas e os bastões encrustrados do preto da terra para logo de seguida voltar ao mesmo depois de saltar um muro, e bem alto, porque a tempestade atravessou uma árvore no trilho. É inacreditável como conseguia ainda saltar daquela altura. Mais trilho, depois as correntes e o Talasnal logo ali à minha espera.
Entro com a firmeza de não me poder demorar muito. Queria fazer o mais possível de dia o caminho até ao Observatório.
Talasnal – Observatório de Vila Nova (12km)
Sobre a mesa:
Pudim Abade de Priscos
(Grandjó Late Harvest 2008)
Saí do Talasnal com a certeza de umas quantas subidas, mais nada. Escadas abaixo cruzo-me com a cozinheira ao telefone que aventa que a sala é pequena e não sabe se consegue enfiar lá mais duas cadeiras. Cheira a cabrito no forno. Cheira a entardecer, numa esplanada de xisto e o mundo a nossos pés, como se dois destinos se cruzassem à mesa, entre dois dedos de conversa, um tinto a disfarçar o pretensiosismo do charme do carvalho francês, meia dúzia de iguarias a compor o repasto de fazer inveja ao mais acurado dos palatos, e um olhar, um sorriso a fazer a mais linda declaração de amor.
- “Amo-te!”
Levei comigo na empreitada desta etapa um companheiro que não sei o nome, seguimos juntos até ao observatório que, obstinado, se escondia de nós. Ora desce, ora sobe, apanhamos o Casal Novo, ora desce, ora sobe, e o Terreiro das Bruxas, e ou é feitiço ou eu já estou baralhado ou eu já não sei onde estou e a volta não era assim! E torna a subir, agora por um corta fogo larguíssimo com postes de alta tensão plantados de forma simétrica por aí acima, e vê-se as luzes vermelhas das eólicas. “Estamos perto!”.
Não, não estamos. Ainda falta muito.
O crepúsculo entesourado pressagiava o cair da noite. Era tempo de ligar o frontal mais uma vez. Éramos gatos pardos, discretos, de olhos felinos no chão.
Passámos os camaradas do Montanha Clube que fazem inveja com a camisola que denuncia que são dali, daquela serra fantástica. Que têm o privilégio de abrir a porta e galgar a direito para aqueles trilhos, que podem, à distância de um salto, engolfar-se naquela paisagem.
Lá longe vêem-se mais duas luzes. Já os apanhamos! E fomos os quatro até ao malfadado Observatório que parecia que corria sempre mais um bocado quando não estávamos a ver e se ia afastando para não o apanharmos.
No observatório havia uma cadeira para mim. E havia mais canja. Que bom! Descobri que no verão posso andar um dia inteiro a melancia e no inverno um dia inteiro a canja. Não é doce, a canja, não me enjoa. Talvez um leite creme da Tia Alice, em Fátima velha, servido no prato da sopa me fizesse bem agora, apesar de ser doce! Mais uma sandes de queijo, um chá quente e deixei partir o meu companheiro de jornada que se adiantou. Saio daí a pouco. O Rui Gaspar pergunta-me se vou sozinho, se não quero esperar por alguém. Vou sozinho.
Observatório de Vila Nova – Vila Nova (10km)
Por fim …
Café e Mignardises
É a descer e é de noite e eu vejo tão mal de noite. Não vale a pena esperar por ninguém porque a descer e à noite ninguém tem o meu ritmo tartaruga. Passam uns quantos camaradas por mim, era o Miguel Serradas Duarte, encosto e vou no seu encalce.
Há quanto tempo não via uma salamandra? Nem sei! Há muito tempo. Esta fazia pose para que a pudesse comtemplar. Seria esta a salamandra que o Rui Pinho também viu? Prostrada a meio do estradão a descer?
Deixo a bicha sarapintada para descobrir a maldade implacável que se havia antecipado e aguardava por mim em jeito de uma amaricante sobremesa. No escuro angustiante desenhava-se uma descida técnica ao estilo “abútrico” que não poupava um milímetro de força. Desci com os pés, e as pernas, e as mãos, e as costas, e a cabeça, e o corpo todo numa sarabanda louca que não findava.
Apetecia-me o estradão enfadonho que noutras ocasiões me arranca obscenidades e a pouca vontade de correr aquela monotonia da mesma cadência, da mesma paisagem.
Sim, estava farto! Nunca mais acabava. Receber de oferta uma descida assim é como aceitar um prato de açorda de galinha com grão da Fernanda das Cortes, ali depois de Vila Nova de Cacela, após acabar de saquear um refestelado “buffet” de casamento ao almoço. É tão bom, cheira tão bem, mas já não apetece! Tomava talvez um porto. Um vintage de 2007. Sim, um porto no cais de Gaia, na esplanada e com a manta a servir de xaile pelos ombros e a cobrir as pernas. Tomava um porto e esbanjava a companhia, depois de um “Olá” ao fiel amigo ali do Bacalhoeiro, cansava a atenção graciosa do outro cálice do mesmo vintage, condenado às mãos delicadas de uma senhora, de pose palaciana e olhos amendoados e cobiçosos. Sim, queria estar no Cais de Gaia, ali é que não!
E entretanto entro no Centro de Estágio de Vila Nova. Pergunto se podem confirmar se estou realmente vivo. Dizem-me que o resto do caminho tem lama, mas é plano. Mentira, não é.
Já não me apetece pão. Uma senhora diz as palavras mágicas “Tenho ali canja!” Que sorte.
O Miguel Serradas Duarte arranca com mais dois camaradas de expedição. Vou também daí a nada.
Vila Nova – Miranda do Corvo (8km)
Por fim …
Adega Velha (Casa D’Aveleda)
Afundei-me clandestinamente na noite, nas intermitências de uma letargia muda, debaixo de uma Lua melancólica, sedutora, uma Lua mínima suspensa num papel de parece nublado. Afundei-me clandestinamente no colo, e nos braços, e na ternura de uns lábios entregues à ganância do prazer. Era um lobo ferido que precisava de aconchego para lamber as feridas. Mas faltavam oito quilómetros. Oito quilómetros de trilhos fabulosos e eu empanturrado. Hei-de voltar para os fazer, mas com fome de serra.
Apanho o Miguel e companhia, acabo por caminhar a um ritmo maior e lá vou serpenteando o single track, ora para cima, ora para baixo, ora com lama, ora com muita lama. O Paulo Alves do Montanha Clube passa-me para me esperar mais à frente e vamos os dois. Desabafo que estou saturado, ele diz-me que está quase, falta passar a Quinta da Paiva e depois temos o pórtico. O telemóvel toca. Ia jurar que estava já sem bateria. Era a minha companhia de outros trilhos que perguntava se estava a chegar. Disse que ainda faltava, que quando cruzasse a meta ligava.
O Paulo parou, ia esperar pelos companheiros do clube, eu acabei por seguir. Depois dizem-me “Faltam cem metros”. Começo a correr no trote possível. Passa mais alguém que me diz “Força, faltam quatrocentos metros!”. Chiça! É azar! Logo me havia de calhar duas pessoas com uma perspectiva matemática tão díspar.
Vê-se a rua com o pórtico ao fundo, experimento um trote mais rápido, e ainda há tanta gente na manga de chegada, batem palmas. Obrigado!
E afinal tinha na meta o melhor dos prémios finisher, uma surpresa tão boa. Três mulheres lindíssimas esperavam-me sem que eu as esperasse ali. Haviam ido buscar-me, e foi tão bom ter dois braços abertos só para mim.
Recebo os parabéns do António Morais, digo qualquer coisa sem consciência disso ao microfone do speaker e o meu UTAX foi assim, uma experiência degustativa. Mais que uma refeição, um êxtase do palato.
Cruzei a meta com a única certeza possível depois de tantas horas de vigília - É obrigatório ir ao UTAX.
PS: Obrigado princesas!
PS1: Obrigado a quem me faz companhia nos treinos, a quem desperta em mim a vontade de ir mais longe.
PS2: Obrigado ao José (CASPA) Brito porque desde a metamorfose que mudou a minha vida tem sido um PT espectacular e um amigo dos grandes.
PS3: Obrigado ao Miguel Sousa que além da companhia lá me vai rebocando no TT (Treininho da treta) à improvável hora de almoço.
PS4: Obrigado aos camaradas e companheiros de viagem que tornaram esta jornada de 25 horas uma caminhada mais encantadora.
PS5: Obrigado a Ti que estás sempre comigo e iluminaste cada um dos meus passos no UTAX.