A Minha Freita começou no dia em que soube a data da Freita 2014. Alguns amigos iam participar na mítica corrida, mas a minha Freita era algo impossível, um desejo, um querer, algo volitivo mas irrealista. Eu? Eu na Freita? Seria extraordinário, mas não podia. A Freita não é para mim. Mas eu queria a Freita, tanto quanto sentia que a Freita me chamava, que clamava pelos meus passos, pelas minhas forças, pelas minhas lágrimas.
Eu precisava da Freita e não sabia.
A minha Freita resolveu-se quando me disseram que acreditavam em mim. Que eu ia conseguir. Quando me disseram que eu subia bem, e que caminhava bem, e que a Freita era uma prova para mim.
Depois vieram os treinos.
Depois foi a viagem, foi o Merujal, e foi a serra.
Depois foi a partida.
Os primeiros quilómetros haviam de ser iguais a tantos outros que se fazem noutras provas. A companhia foi essencial nesta altura. O saber de quem já lá havia experienciado o duelo intrínseco pelo cumprimento do sonho de acabar a Freita serviu-me de conselho para governar os ímpetos iniciais de querer fazer tudo ali, logo ali, no princípio, como se a Freita fosse uma corrida de 20 quilómetros.
O rio foi o primeiro desafio.
E depois veio o PAC1.
E no PAC1 aquela broa maravilhosa que me temperou os sentidos, me aguçou o ânimo.
E depois veio Drave.
Calcorrear a Freita antes e depois de Drave havia de tornar-se uma experiência memorável.
E a seguir a Drave novamente o rio e aquelas piscinas naturais manchadas por um azul a lembrar o céu, não sei se um céu primaveril com odores a pêssegos maduros, não sei se um céu melancólico de um outubro dormente, mas com certeza um céu turquesa pontuado pelas imagens de quem corre a banhar-se, a saciar a avidez, a impaciência da sede naquelas águas tão claras.
E logo depois eram os 40. A barreira difícil.
O aviso que a prova começava depois dos 40 não me abandonava. A paragem mais demorada foi ali. Um amigo, um daqueles amigos que são só amigos das corridas, mas que eu sei que é um amigo das corridas mas um amigo daqueles verdadeiros, deu-me o que eu precisava. A notícia que teimava em não chegar no telefone e que eu não conseguia ler. Os olhos rasaram nesse momento e eu soube ali que queria acabar a Freita.
A Freita não é física, dizem que é psicológica, mas a minha Freita é mais do que isso. A minha Freita é espiritual, é uma experiência transcendental.
A minha Freita não foi a Besta. Resumo-a aos 10km que medeiam o quilómetro 50 e o 60. Os 10Km mais longos da minha vida. Tudo se decidiu aí. Foi nesta etapa que eu me fechei enquanto pessoa à voz interior, que me encontrei, que percebi a experiência de me defrontar comigo mesmo.
A minha Freita de 10Km foi o despoletar do transe, o tal estado profundo, uma espécie de auto hipnose. O corpo, esse corre sozinho, as pernas sabem de cor o caminho, como se o tivessem já percorrido. O corpo viaja livre, rompendo a serra, desafiando os elementos. E eu? Eu não sei. Não sei de mim, não sei onde ando, perdi-me a vaguear encurralado em memórias, em desejos, em conversas incorpóreas, no meu mundo, no meu mundo desconhecido. Eu corri ausente.
Enquanto descia ao mais profundo dos sentimentos o tempo passava. E os quilómetros também.
E de repente tinha chegado aos 60. Faltavam 10. Mas como é isto possível?
A Freita é a negação da dor, é a abstração do corpo, é o vaguear pelas memórias. Na Freita chora-se, esboçam-se sorrisos, ou mordem-se palavras ora amargas, ora açucaradas. Na minha Freita de 10Km eu senti um milhão de coisas sem ter disso a consciência. A minha Freita de 10Km foi, por isso, uma experiência invisível.
E depois foi a noite. E faltava a Mizarela. A Mizarela que eu não vi, mas da qual senti o pulsar da água que caía, ali mesmo. Era preciso voltar a subir. Viam-se as luzinhas, quais pirilampos, que deambulavam vertiginosamente na derradeira subida.
E depois foi a meta.
E eu fiz a Freita.
PS1 – Agradeço de coração a quem me acompanhou nesta loucura. A quem acreditou em mim, muito antes de eu próprio crer ser possível. A quem me ajudou nos treinos. A quem teve a coragem de me encorajar.
PS2 – Obrigado a quem me fez companhia durante esta viagem de 17H37 tornando mais fácil esta caminhada.
PS3 – Obrigado à luzinha que eu não vi, mas que tomou conta de mim na Freita.